09/03/2010

dica de leitura

Cisnes Selvagens, de Jung Chang

Este é um livro extraordinário, comovente e instrutivo no mais alto grau. Embora não seja essa a intenção da autora, todos os militantes socialistas deveriam lê-lo, pois para quem quiser entender a essência do maoismo, não há nada melhor.


Li algumas resenhas feitas por apologistas do stalinismo e do maoismo. São críticas estúpidas, que se baseiam apenas no fato da autora ser hoje uma defensora das democracias ocidentais. Como se isso retirasse a força do livro, sua honestidade e veracidade! A autora tira conclusões antisocialistas de suas experiências mas partindo de uma consciência clara da natureza do stalinismo e do maoismo, podemos encontrar muitos exemplos vívidos que ilustram uma análise marxista verdadeira, que não reduza a realidade a esquemas pré-concebidos ou a estereótipos, mas a mostre em toda a sua complexidade, encarnada no drama de seus protagonistas.


Essa é a história de três gerações da família da autora. Sua avó foi vendida como concubina a um senhor de guerra, que dera um golpe e fechara o parlamento da recém-criada república chinesa. Quando criança, ela teve os pés enfaixados para que não crescessem e ficassem pequenos quando adulta (o padrão de beleza feminino na época). Mais tarde, casou novamente com um médico empobrecido. Sua filha cresceu em uma época de mudanças para o país. A China fora dividida em esferas de influência pelas potências estrangeiras e atravessava uma guerra civil entre nacionalistas e comunistas. A jovem se filiou aos últimos, que via como os únicos que combatiam a invasão japonesa. E foi no movimento que ela conheceu seu marido e futuro pai de Jung Chang.

É nesse ponto que começamos a ver por dentro a estrutura e composição social do Partido “Comunista” e do Exército Vermelho. Eram camponeses, tradicionalmente desconfiados da gente das cidades, que identificavam com os opressores. Essa desconfiança se uniu à teoria de luta de classes stalinizada do partido comunista e sua direção monolítica que não admitia contestações e praticava uma vigilância constante contra os “desvios”.


Entretanto, Jung Chang também mostra a aceitação, de fato o apoio, que o partido desfrutava logo após a revolução. Ele unificara o país, abolira as relações feudais e fizera a reforma agrária; enfim, uma revolução nacional. Mas, ao mesmo tempo, ele não era um partido genuinamente socialista e internacionalista. A revolução chinesa seguiu a tradição nacional de levantes camponeses que derrubavam as velhas dinastias e assumiam seu lugar. Mao foi um líder camponês que, apesar de sua retórica, não possuía tradições democráticas. Seu ambiente sempre foi o de um aparato militarizado, onde o segredo, a dissimulação e a hierarquia eram os traços dominantes. A intrusão do serviço secreto russo nas cúpulas do movimento teve um papel corruptor adicional, já que as práticas da burocracia russa foram copiadas pelos chineses. Mao começou de onde Stalin parou, construindo um estado totalitário.


Apesar disso, é fato que não havia terror político no início da revolução. Os problemas começaram quando a situação econômica piorou e as diferentes alas da burocracia começaram a discutir qual era a saída. A interpretação até hoje aceita por muitos marxistas é que a ala de Mao procurava defender a economia planificada contra a outra, que defendia o retorno ao capitalismo. É uma visão esquemática, copiada do exemplo russo. A gestão econômica sob o comando de Mao provou ser um desastre, causando a grande fome dos anos 50. A Revolução Cultural, além de seu enorme custo humano, paralisou o país do ponto de vista econômico, já que esvaziou as escolas e universidades e condenou o ensino voltado para a técnica, sem falar da lavagem cerebral e do patrulhamento ideológico. A não ser o setor de armamentos, a fração de Mao não ajudou um único setor da economia a avançar. Além do mais, não havia uma tradição de um movimento operário revolucionário independente. A burocracia chinesa era muito menos tolhida pelo peso do passado revolucionário que a burocracia russa. Na China, a coisa se pareceu muito mais com uma simples briga de frações pelo poder, onde a questão sobre os rumos da economia exercia um papel secundário.

Os capítulos sobre a Revolução Cultural são os mais dolorosos e fascinantes. A autora faz análises interessantes e perspicazes sobre os processos sociais e a composição da guarda vermelha. Em um trecho, quando todos os livros estavam proibidos e só se admitia os “clássicos”, ela diz que a leitura de Marx a ensinou a pensar analiticamente. Uma admissão involuntária de que o marxismo não tem nada a ver com o maoismo! Ainda segundo Jung Chang, Marx a ajudou a começar a superar a lavagem cerebral inculcada nela.



A Revolução Cultural consistiu nisso: Mao, com o objetivo de se livrar de seus adversários no Partido, desencadeou uma tempestade popular ao dar vazão às frustrações e raivas de uma juventude que cresceu em um estado totalitário e que, de um lado, não tinha muitas possibilidades de expressão política e que, de outro, havia sido educada na idolatria fanática a Mao. Este deu-lhe um canal para expressar suas frustrações que, como sempre é o caso num ambiente totalitário, tomou um caráter totalmente negativo e se expressou através dos instintos mais baixos e dos costumes mais atrasados. A revolução “cultural” não combateu os velhos preconceitos, antes reforçou-os como uma forma de atacar os “costumes burgueses decadentes”. Uma amostra disso foi a teoria do sangue, de que um filho sempre carregará consigo o legado dos pais. Alguém cujos pais foram marcados como “burgueses” eram perseguidos. Num dos exemplos mais absurdos que a autora nos dá, um colega de seu irmão foi discriminado até o suicídio por ser filho de um “sapato usado”, isto é, uma mãe solteira.

Como sempre é o caso em um clima de histeria e fanatismo, muitos se aproveitaram para se livrar de quem não gostavam. Vários tiveram suas vidas destruídas por denúncias anônimas de invejosos. O pai de Chang era um militante incorruptível, genuinamente devotada à idéia da renovação da China. Foi subindo de posto até se tornar governador de província. Mas sempre rejeitou os privilégios tradicionalmente associados às autoridades, pois queria ajudar a criar uma nova cultura política, mais democrática. Era de uma austeridade quase fanática. Certa vez, sua mulher teve que ir andando até o hospital e quase morreu e perdeu o filho, porque ele se recusou a usar o motorista que estava à sua disposição por ser ele uma autoridade.



Com toda a sua integridade, ele não podia compactuar com a corrupção e perseguição desenfreadas da Revolução Cultural. Foi perseguido até a loucura e a morte.

Apesar do aparente caos das multidões de jovens atacando autoridades e destruindo monumentos culturais, havia um certo padrão em seus ataques, um centro de comando no “bando dos quatro” chefiado pela esposa de Mao, que, através de diversas correias de transmissão, chegavam aos guardas vermelhos, que nunca ultrapassavam os limites estabelecidos. Suas frases sobre “combater os reacionários”, “lugar às massas”, “pôr fim à burocracia”, que seduziram muitas pessoas no Ocidente, eram vazias, pois em um ambiente de fanatismo totalitário não era possível uma livre troca de idéias sobre os rumos da sociedade e o estabelecimento de uma verdadeira democracia socialista. A classe trabalhadora não se envolveu nessa “revolução”. O exército estava a postos para reprimir possíveis excessos. Os guardas vermelhos se constituíram na guarda pretoriana do regime totalitário de Mao. O historiador soviético Vadim Rogovim disse que eles, por seus métodos, composição social e objetivos, eram mais similares às SA (tropas de assalto) nazistas do que à KGB de Stalin. Eles depredavam e aterrorizavam a ala da burocracia contrária a Mao. Instauraram um clima de terror que subjugou toda uma nação e que se expressava, entre outras coisas, no recalcamento da sexualidade, e quando não eram mais necessários, foram descartados. Apesar de seus ataques à “burocracia”, não abalaram no mínimo grau a rígida hierarquia do regime maoísta, mas a reforçaram, quando a briga de facções terminou e o controle de Mao foi reafirmado.

Os custos humanos e sociais deste movimento foram altíssimos. Não há como não se emocionar com os sofrimentos de pessoas retratadas de forma tão simples e comovente por Jung Chang. Através da história de sua família, é o martírio de todo o país que ela nos revela, fato tão pouco conhecido no Ocidente, escondido como foi por décadas de desinformação, propaganda e desinteresse, mesmo do movimento de esquerda, em revelá-lo. É o resgate da história de seus compatriotas, viva e apaixonante, que ela empreende, um povo que por tanto tempo foi tratado apenas como números pelas potências estrangeiras e por seus próprios governantes.



Acima deste drama paira, como uma figura sinistra e onipotente, Mao Tse-Tung. Ao contrário de Stalin, que desde cedo foi submetido a uma crítica desmistificadora de sua pessoa e seu papel na Revolução Russa pelos marxistas (o principal deles sendo Trotsky), Mao, mesmo hoje, está envolto em mistério. Muitos pontos de sua versão oficial da história foram aceitos como verídicos mesmo por seus críticos. Até recentemente, era difícil contestá-los. A biografia que Jung Chang escreveu junto com seu marido John Halliday é a primeira grande tentativa de desmistificar o “grande timoneiro”.


“Mao – A história desconhecida”, no entanto, não atinge esse objetivo. Não está à altura de “Cisnes Selvagens” como documento histórico de grande valor.

A figura desse homem exerce um grande fascínio sobre a autora, como ela mesma confessa. Por isso mesmo, ela não consegue dar uma imagem verdadeira a ele em sua relação com o partido e a revolução. Querendo acabar com o mito do “sol radiante da humanidade”, ela nos apresenta a imagem de um supergênio do mal, um Darth Vader chinês, que a todos esmaga impiedosamente e a quem ninguém pode resistir. De um modo ou de outro, Mao continua a ser uma figura super-humana.
A grande força de “Cisnes Selvagens” é que ele dá voz a um povo que fora silenciado por muito tempo. Isso está ausente em “Mao”. Os chineses se transformam em meras cifras à medida que caem vítimas de Mao, ou são mostrados como incapazes, já que não podem resistir às suas investidas. É como se a China inteira fosse um teatro onde ele reinasse absoluto do princípio ao fim, e o povo chinês um mero coadjuvante sem vontade ou iniciativa.

Além disso, se o anticomunismo da autora era apenas um detalhe em seu primeiro livro, aqui ele se torna a mola propulsora, mostrando que o comunismo é inerentemente mau e que só pode atrair pessoas desprezíveis como o “grande timoneiro”. O livro está cheio de comentários e conclusões unilaterais e gratuitos, sempre com o objetivo de denegrir Mao e as idéias socialistas (aliás, parece que os autores deliberadamente ignoraram fontes que poderiam mostrar Mao sob uma luz menos desfavorável).



A (pouca) análise que fazem das condições sociais da China, da guerra civil e das figuras históricas é pueril. Tentam provar que os comunistas eram mais brutais e selvagens que os nacionalistas, sempre inventando novos métodos de tortura. Mas a verdade é que a China possuía uma cultura de violência e barbarismo que vinha de seu passado feudal e que penetrava em todos os setores, independentemente de suas bandeiras. O exército de Mao, moldado mais nas tradições camponesas de seu país e não sendo um movimento socialista consciente, não tinha como ser menos bárbaro que o de Chang Kai-shek. Mas não foi isso que lhe permitiu vencer a guerra civil, e sim no fato de que os comunistas eram a única força que apresentavam uma saída viável aos problemas sociais da China naquela época, ao contrário do capitalismo corrupto dos
nacionalistas.

Um exemplo gritante do unilateralismo dos autores é que eles gastam apenas alguns parágrafos para falar da selvagem repressão de Chang aos comunistas e militantes operários após o fracasso da revolução de 1927, que resultou em milhares de mortos, alguns após desumanas torturas (fato que ajudou a radicalizar o movimento chinês, pois mostrou que não era possível haver uma mudança social dentro das estruturas do regime capitalistas que Chang representava) e duas páginas inteiras para descrever o suposto prazer que Mao sentiu ao ordenar e testemunhar a morte de três fazendeiros.



O elemento de novidade que esse livro traria, documentos agora revelados que trazem fatos novos sobre o papel de Mao, o Exército Vermelho e suas relações com a Rússia, dilui-se num quadro geral em que a perversidade e a sede de poder de Mao é a única força motora da história, ao lado da estupidez de todos os que travaram relações com ele, amigos e inimigos. Uma biografia verdadeira de Mao, que dê a justa relação entre sua pessoa e a história da China, ainda está para ser escrita. “Mao – A história desconhecida” é apenas mais uma entre tantas biografias que periodicamente são lançadas e causam sensação, para logo serem esquecidas.


Coisa diferente deve acontecer com “Cisnes Selvagens”. Agora em que novas convulsões sociais agitam a China e se divisa no horizonte a entrada em cena de sua poderosa classe trabalhadora, este livro prestará inestimáveis serviços a uma geração que desperta para a atividade política. Os marxistas e socialistas que desejam participar desses futuros eventos e apresentar aos trabalhadores a bandeira de uma nova alternativa, limpa dos crimes do maoismo e do stalinismo, aprenderão bastante com ele.

Autor: Diego Siqueira,militante socialista de SP/Brasil

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